Neo- Japanesque

NEO-JAPANESQUE: RELEITURAS E REPRESENTAÇÕES DA CULTURA 
TRADICIONAL JAPONESA ATRAVÉS DO ROCK 

Considerado o primeiro movimento essencialmente japonês no rock (cf. YUN, 2005: p. 11), o visual kei surgiu no final da década de 80, sob influências musicais e visuais tanto externas quanto internas. Com o boom de popularidade na década de 90, novas bandas surgiram no cenário, abordando inúmeros temas – e, entre tais temas, estava a cultura tradicional japonesa. Nossa proposta neste trabalho, como parte de uma pesquisa maior sobre o assunto, é analisar visualmente as releituras da cultura tradicional feitas por algumas bandas e, com isso, chegar a três pontos: as principais características visuais do visual kei, os principais traços da cultura tradicional japonesa recuperados e as representações criadas a respeito dessa cultura tradicional no próprio Japão e em outros países. 

A gênese do choque visual 
Durante os anos 70 e 80, uma série de bandas surgiram na cena japonesa, situadas em diversos estilos de rock (do metal ao post-punk), trajando roupas diferentes e usando maquiagem e penteados extravagantes. Esse proto-visual kei já contava com as páginas de várias publicações especializadas em rock, e seria nesse ambiente que surgiria a cena visual, coroada por 2 momentos: a fundação de revistas específicas de bandas de rock visual e a adoção do nome do estilo após o álbum “Blue Blood” da banda X JAPAN. Nesse estágio, o visual kei estava ligado umbilicalmente ao metal e ao punk, estética e musicalmente. Com a 
chegada dos anos 90, criou-se um duplo movimento no cenário: um boom na quantidade de grupos e a construção de uma identidade artística própria do estilo. Algumas bandas seminais se apresentam nesse momento como a base dessa construção identitária: LUNA SEA, apresentando novas influências a cada álbum, do rock psicodélico ao jazz; Kuroyume, com uma estética musical muito peculiar, que logo se tornaria a base de quase todas as músicas de bandas menores do período; e, por fim, Malice Mizer, com o aspecto teatral, a influência do clássico, do rock gótico e, posteriormente, da música eletrônica. 

Imagem 1 - LUNA SEA: uma das bandas que definiu um “modelo” de visual keinos anos 90. (Fonte: 
Revista Fool’s Mate, setembro de 1992) 

A banda LUNA SEA é largamente conhecida por ser uma das grandes bases do visual kei; várias características visuais e sonoras presentes em seus trabalhos – especialmente até 1996, considerado o ano de transição da banda,onde o visual passa a ser mais leve e as músicas mais voltadas para o grande público – poderão ser encontradas na maioria das bandas dos anos 90, a década do visual por excelência. Observa-se (conforme as imagens 1 e 2) o uso de maquiagem pesada, produção de penteados diferentes e um largo trabalho de contrastes – entre o preto, o branco e uma terceira cor. Outra característica muito marcante é o visual que beira – e às vezes chega até – a androginia. Musicalmente, há a presença marcante do baixo, que elabora livremente sua linha, em contraste com a tradição norte-americana, onde o baixo 
serve de suporte para as guitarras. O próprio uso de efeitos nas guitarras das bandas de visual kei nos anos 90 se constitui mais livremente em relação às bandas ocidentais, de forma que se obtêm sonoridades muito peculiares em algumas músicas. 
Assim, formou-se um “modelo” que seria seguido por muitos durante toda a década de 90 – e até hoje, em alguns casos – e que atingia em cheio o estereótipo social de seriedade, passividade e introspecção dos japoneses. Pode-se inferir uma relação entre o visual kei e a indústria de animes e mangás– prestes a atingir seu auge – mas acreditamos que tal relação não resiste à verificação, haja vista que o rock visual se constituiu como um estilo de sucesso mercadológico muito específico. Outra relação que não nos parece muito clara é a estabelecida entre o visual das bandas e a tradição do teatro kabuki (cf. YUN, 2005: p. 14), 
uma vez que a aceitação social deste foi bem mais profunda que a do rock visual – que acabou mais ligado a uma cultura juvenil (cf. BILIATTO, 2008: p. 30-40). 

 O Neo-Japanesque 
Em 1999, quando o visual kei já se encontrava em certa decadência comercial, surgiu em Tokyo uma banda cujo conceito se baseava no resgate da cultura tradicional japonesa. Com letras inspiradas em lendas ou construídas a partir de alguns modelos já conhecidos na literatura tradicional do Japão, a banda Kagrra,(com a vírgula) buscava trazer o “wa”, cuja tradução mais ou menos precisa seria “atmosfera japonesa” (cf. JaME, 2007). Essa releitura da tradição japonesa, mesclada ao visual kei, essencialmente moderno, resultou 
no que a própria banda chamou de Neo-Japanesque. 

Imagem 2 – Kagrra,: principal banda a fazer releituras da cultura tradicional japonesa dentro do visual 
kei (Fonte: YUN, 2005, p. 55) A releitura da cultura tradicional é mais facilmente identificável através do uso de kimonos e adereços (Fonte: Revista SHOXXbis #6, maio de 2006) 

Musicalmente, o Kagrra, traz uma sonoridade leve, ainda – em linhas gerais – influenciada pelo visual kei clássico dos anos 90, o que significa dizer que o baixo é bem destacado em relação às guitarras. Somado a isso, a banda trouxe o uso de escalas orientais e de instrumentos tradicionais – em especial o koto, um instrumento de treze cordas em formato de mesa – para ajudar a criar sua atmosfera orientalizada. Visualmente, a banda lançou mão de roupas e acessórios mais tradicionais em conjunto com os cabelos e as maquiagens modernas, além de uma produção cenográfica bem elaborada, para reforçar o “wa”.
Observa-se muita influência, nas temáticas abordadas pela banda, do período Heian – o período que é classicamente tratado como florescimento prodigioso das artes no Japão, sendo considerado como a caracterização mais comum da tradição japonesa (cf. SANSOM, 1973: p. 188-273; HALL e MASS, 988). Soma-se a isso o fato do vocalista da banda – e principal compositor – ser fã de histórias japonesas de terror, cujas raízes se encontram por entre lendas populares. 
Assim, observa-se a reconstrução do que seria a cultura tradicional japonesa entre os jovens japoneses e estrangeiros. Essa ressignificação parte das balizas japonesas em relação ao seu passado, de sua própria representação de passado, e torna-se produto cultural a ser consumido em muitos outros lugares. Coloca-se, então, uma questão: esse produto cultural realmente reconstrói representações? E, se sim, quais representações da cultura tradicional são construídas pela juventude do Japão e de outros países através destas bandas? É na busca por tais respostas que nossa pesquisas se situa; entre a história e a antropologia, entre tradição e modernidade, o que tentamos compreender é a construção de representações a respeito do
passado através de produtos culturais considerados “menores”, demonstrando, conforme nossa hipótese teórica, que o consumo da indústria cultural – como qualquer outro tipo de consumo – não é passivo, não dispensa o receptor da atividade de ressignificação e não se dedica ao empobrecimento do universo mental e cultural de seu público.

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